O presente estudo analisa criticamente os processos de colonização e colonialidade que estruturaram práticas conservadoras no campo social, cultural e educacional, propondo a descolonização como fundamento de uma práxis libertadora intercultural. A partir de uma abordagem teórico-crítica, dialoga-se com autores e autoras do pensamento descolonial, antirracista e intercultural, como Geni Núñez, Nego Bispo, Frantz Fanon, Achille Mbembe, Lélia Gonzalez, Kabengele Munanga e Walter Mignolo. O texto demonstra que a colonização operou não apenas pela violência material, mas também pela imposição simbólica, religiosa, linguística e epistemológica, produzindo hierarquias raciais e culturais persistentes. Defende-se que a educação intercultural e antirracista constitui um eixo estratégico para a superação dessas estruturas, promovendo a valorização dos saberes afrodescendentes e indígenas e a construção de uma sociedade plural, democrática e socialmente justa.
Palavras-chave: Descolonização; Educação intercultural; Racismo estrutural; Práxis libertadora; Saberes originários.
1. Introdução
A colonização das Américas constituiu-se como um processo histórico marcado pela violência física, simbólica e epistêmica. Para além da escravização de povos africanos e da expropriação dos territórios indígenas, a empresa colonial instituiu um regime de dominação baseado na negação das culturas, línguas, espiritualidades e modos de vida dos povos subalternizados. Tal processo consolidou práticas conservadoras que naturalizaram hierarquias raciais, culturais e epistemológicas, cujos efeitos persistem no presente.
Nesse contexto, a escritora, psicóloga e ativista Guarani Geni Núñez, em Descolonizando amores (2023), problematiza a catequização e a evangelização como expressões do racismo religioso e da colonialidade dos afetos. Em diálogo, o intelectual quilombola Nego Bispo (2015) denuncia o etnocídio e a etnofobia como pilares da colonização brasileira, evidenciando a tentativa sistemática de destituição das bases socioculturais dos povos afro-pindorâmicos.
As bulas papais, como a Romanus Pontifex (1455), forneceram respaldo jurídico-teológico à escravização e à expansão colonial, revelando o entrelaçamento entre religião, poder e dominação. A colonização, portanto, estruturou-se como um projeto civilizatório excludente, cuja lógica permanece operante nas instituições contemporâneas.
2. Colonialidade, poder e violência simbólica
A colonialidade do poder, conforme analisada por Aníbal Quijano e aprofundada por Walter Mignolo, refere-se à permanência das estruturas coloniais para além do fim formal do colonialismo. Essas estruturas organizam o mundo a partir de hierarquias raciais e epistemológicas, definindo quais saberes são considerados legítimos.
Achille Mbembe (2014) destaca que não há libertação política, econômica ou tecnológica sem autonomia linguística. A língua, nesse sentido, constitui um campo central de disputa, pois foi historicamente utilizada como instrumento de expropriação e silenciamento dos povos colonizados. A imposição linguística operou como forma de violência simbólica, produzindo alienação cultural e epistemológica.
Cida Bento (2022) analisa como a branquitude se sustenta por meio de pactos silenciosos que naturalizam privilégios raciais, frequentemente mascarados por discursos de meritocracia, cordialidade e neutralidade institucional. Tais mecanismos reforçam práticas conservadoras que reproduzem desigualdades estruturais.
3. Metodologia
O estudo adota uma abordagem qualitativa, de natureza teórico-reflexiva, fundamentada em revisão bibliográfica e análise crítica de produções acadêmicas, culturais e normativas. Os referenciais teóricos mobilizados situam-se no campo dos estudos descoloniais, da educação intercultural e do pensamento antirracista. A metodologia busca articular teoria e prática, compreendendo a educação como espaço privilegiado de disputa epistemológica e política.
4. Necropolítica e gestão colonial da vida e da morte
Mbembe (2016), ao formular o conceito de necropolítica, analisa como o poder soberano contemporâneo decide quem deve viver e quem pode morrer. Nas sociedades marcadas pela colonialidade, a violência não se manifesta apenas de forma excepcional, mas como política permanente de gestão da vida, especialmente sobre corpos racializados.
A generalização da insegurança, associada à distribuição desigual de armas e à militarização dos territórios periféricos, aprofunda desigualdades sociais e raciais. Essa lógica evidencia a continuidade das práticas coloniais na organização do Estado moderno, sobretudo no Sul Global.
5. Descolonização como ruptura e recomeço histórico
Frantz Fanon (1968) concebe a descolonização como um processo radical, caracterizado por uma ruptura absoluta com a ordem colonial. Não se trata de uma transição gradual, mas de uma transformação profunda das relações de poder, capaz de inaugurar novas formas de existência social, política e cultural.
Essa perspectiva permite compreender a descolonização como um projeto ético-político que exige a reconstrução das instituições, dos imaginários sociais e das práticas educativas. A práxis libertadora, nesse sentido, articula ação e reflexão crítica, orientada pela emancipação dos sujeitos historicamente oprimidos.
6. Racismo estrutural, gênero e exclusão
Lélia Gonzalez (2020) evidencia como o racismo estrutural se articula ao sexismo, produzindo formas específicas de exclusão para mulheres negras. Expressões como “boa aparência”, amplamente utilizadas no mercado de trabalho, funcionam como códigos raciais que reiteram desigualdades.
Mesmo diante de avanços legais e educacionais, tais práticas revelam a persistência da colonialidade nas relações sociais. A interseccionalidade, portanto, constitui ferramenta analítica fundamental para compreender a complexidade das opressões.
7. Educação intercultural e legislação antirracista
No Brasil, as Leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08 representam marcos importantes na luta pela valorização da história e cultura afro-brasileira, africana e indígena. Contudo, a efetivação dessas leis enfrenta resistências que expressam práticas conservadoras no campo educacional.
Kabengele Munanga (2005) destaca a necessidade de desconstruir estereótipos e incorporar metodologias interculturais que reconheçam a pluralidade de saberes. A educação intercultural não se limita à inclusão de conteúdos, mas implica a transformação das práticas pedagógicas e das relações de poder no espaço escolar.
8. Cultura, arte e resistência descolonial
A produção cultural constitui espaço privilegiado de denúncia e resistência. A música Nada mais me surpreende (2024), de Tiken Jah Fakoly, denuncia os genocídios promovidos contra povos do Sul Global, evidenciando a dimensão global da colonialidade. Do mesmo modo, a música Preto Demais (Araújo; Bastos, 2023) explicita a criminalização da juventude negra e a seletividade penal racializada.
Essas expressões artísticas ampliam o debate acadêmico, conectando teoria e experiência vivida.
9. Desobediência epistêmica e práxis libertadora
Walter Mignolo (2008) propõe a desobediência epistêmica como estratégia para romper com a colonialidade do saber. Trata-se de questionar os cânones eurocêntricos e afirmar epistemologias outras, enraizadas nas experiências históricas dos povos subalternizados.
A práxis libertadora intercultural emerge desse movimento, articulando saberes acadêmicos e tradicionais, teoria e prática, educação e transformação social.
10. Conclusão
A descolonização de práticas conservadoras exige um enfrentamento direto às estruturas históricas de poder que sustentam o racismo, a exclusão e a desigualdade. A educação intercultural e antirracista apresenta-se como eixo central desse processo, ao possibilitar a valorização dos saberes afrodescendentes e indígenas e a construção de uma sociedade plural.
Conclui-se que a práxis libertadora intercultural não é apenas uma proposta pedagógica, mas um projeto político de transformação social, comprometido com justiça, dignidade e emancipação dos povos historicamente oprimidos.
Referências
BENTO, Cida. O pacto da branquitude. Revista da ABPN, v. 14, n. ed. especial, 2022.
BISPO DOS SANTOS, Antônio (Nego Bispo). Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília, 2015.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
FAKOLY, Tiken Jah. Nada mais me surpreende. Música, 2024.
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
ARAÚJO, Hugo Albuquerque; BASTOS, Fernanda de Oliveira. Preto Demais. Letra de música, 2023.
MCINTOSH, Peggy. Privilégio branco: desfazendo a mochila invisível. Peace and Freedom, 1989.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios, n. 32, 2016.
MBEMBE, Achille. Sair da grande noite. Luanda: Edições Mulemba, 2014.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2005.
NÚÑEZ, Geni. Descolonizando amores. São Paulo: Planeta Brasil, 2023.
MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica. Cadernos de Letras da UFF, n. 34, 2008.

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